As sequelas de uma relação abusiva vão além de sintomas psíquicos, podendo se manifestar na saúde física da vítima. Saiba como buscar ajuda.
“Ele me feria e depois cuidava de mim, para poder dizer: ‘tá vendo, mas só eu cuido de você’. Cheguei a falar que ele era o homem que ‘me dava uma facada, mas me levava para o hospital’. Nunca foi violento, nunca gritou comigo, mas fazia essa chantagem emocional que me destruía aos poucos.” Esse é um trecho do relato de L* sobre o relacionamento abusivo que viveu durante três anos. O parceiro era um homem 20 anos mais velho, casado e em uma posição de poder em relação à sobrevivente dos abusos. Como consequência do trauma desse relacionamento, L* desenvolveu ansiedade, insônia e engordou aproximadamente 20 quilos.
Um relacionamento abusivo não é apenas aquele em que há violência física. Agressões sexuais, psicológicas, patrimoniais e morais também são formas de violência e caracterizam um relacionamento abusivo.
Veja como cada uma delas pode se manifestar:
- Física: agressões que vão de apertões e empurrões a socos e pontapés;
- Psicológica: é a mais sutil, o que a torna difícil de ser identificada e validada. Uma das formas de identificá-la é se questionar: o comportamento do seu parceiro ou parceira faz você se sentir desconfortável? Desrespeitada? Essa atitude diminui a sua autonomia? Se sim, é uma forma de violência psicológica.
- Patrimonial: quando há danos aos bens. Pode ser o uso de um dinheiro da conta conjunta do casal, o ato de esconder os documentos ou as chave da residência, etc;
- Moral: xingamentos, ataques à reputação e críticas mentirosas se enquadram na violência moral. Se ela acontecer no ambiente virtual, a caracterização é a mesma, e a prática se mantém passível de denúncia;
- Sexual: estupros também acontecem dentro de relacionamentos, uma vez que QUALQUER forma de obrigar ou coagir uma pessoa a ter relações sexuais sem que ela dê consentimento é crime. Privar a pessoa do uso de métodos contraceptivos ou da escolha pelo uso de preservativos também se enquadra em violência sexual.
Embora as mulheres cisgêneros (aqueles que se identificam com o gênero atribuído no nascimento) em relacionamentos heterossexuais sejam maioria entre as vítimas de violência doméstica e relacionamentos abusivos, a dinâmica também pode existir entre casais homoafetivos, compostos apenas por homens, por mulheres ou nos quais uma das partes é uma pessoa transexual (indivíduo que não se identifica com o gênero designado no nascimento) ou não binária (quem não se identifica com nenhum dos dois gêneros, masculino e feminino).
Quais são os sinais de uma relação abusiva?
Há alguns sinais de que a relação pode se tornar disfuncional logo no início. O love bombing – afeto e cuidado excessivos que precedem a fase de abandono e desvalor – é uma das principais características desse tipo de relacionamento, como explica a psicóloga Alessandra Augusto, pós-graduada em terapia sistêmica e pós-graduanda em terapia cognitivo-comportamental e em neuropsicopedagogia.
“O abusador ou a abusadora demonstra no início do relacionamento um excesso de amor, de cuidado, que tendem a ser interpretados como carinho e afeto pela futura vítima. Ao mesmo tempo, ele usa da estratégia de se diminuir para iniciar a sua manipulação.”
A profissional exemplifica. “Essa pessoa com características de abusadora vira para a vítima e diz: ‘Você é muito expansiva, domina os lugares que nós vamos. Eu te amo tanto, fico até feliz que você seja assim, mas eu não consigo te acompanhar’. A partir desse tipo de fala, a vítima começa a experimentar uma certa culpa ao achar que é a responsável por provocar situações que deixem esse parceiro ou parceira desconfortável, afinal, ela não quer fazer com que a pessoa amada se sinta mal, diminuída. E o que ela faz? Começa a embotar, a se moldar conforme seu algoz deseja.”
Aos poucos, a pessoa abusiva vai retirando o afeto, o cuidado, levando a vítima a cair em um ciclo de culpa e de autoquestionamento. “A vítima começa a tentar entender o que ela fez de errado para que esse afeto sumisse. Por estar envolvida por esse sentimento de culpa e já estar numa posição de dependência do abusador, ela não enxerga que o movimento foi exclusivamente do outro”, pontua a psicóloga.
Com isso, sua autoestima, identidade, independência e vigor vão sendo destruídos, até não restar nada além de uma dependência total da figura abusadora, que fica livre para manipulá-la como e quando quiser.
“Nesse momento, o gaslighting (ato de distorcer ou falsificar informações com fins de manipulação) se intensifica. A vítima chega até o parceiro e tenta entender o motivo da mudança brusca de comportamento dele, e esse parceiro aponta que só mudou por culpa da vítima, sem citar exatamente qual comportamento da vítima teria provocado essa mudança. Quando essa manipulação se estende por muito tempo, a vítima passa a tomar as falas distorcidas do abusador como verdade, e fica presa tentando ‘consertar’ a relação para que ela volte ao normal. Mas não há normal, sempre foi uma relação doente.”
Identificando os sinais da relação abusiva
C*, que também preferiu não se identificar, relembra que percebeu os sinais de que havia algo errado no comportamento do ex-marido ainda na lua de mel. “Estávamos em um passeio e tivemos uma briga muito feia. Ele foi agressivo verbalmente, me largou sozinha e eu fiquei chorando. As brigas eram constantes, e era normal eu escutar frases como “você é sempre a culpada de tudo”, “eu fico assim por sua culpa”, entre outras. Ele nunca me bateu, mas sempre apelou psicologicamente.”
Há outros sinais de que um relacionamento não é saudável, como a revista AzMina, veículo jornalístico focado na cobertura de temas diversos com recorte de gênero, listou em um especial sobre o tema. Entre eles, estão:
- Ciúme excessivo;
- Controle;
- Invasão de privacidade (mexer no celular, ler emails ou mensagens sem autorização);
- Afastamento de outras pessoas;
- Chantagem;
- Destruição da autoestima;
- Invalidação de sentimentos.
Como sair de uma relação abusiva?
Uma pergunta muito ouvida pelas vítimas de relacionamentos abusivos é: “Por que você não terminou antes?”, o que acaba culpabilizando a vítima pela situação que lhe gerou sofrimento e deixando de responsabilizar a pessoa abusadora. Acontece que toda a dinâmica do abuso existe para prender a vítima através da dependência do outro, seja essa dependência emocional, financeira ou de outro gênero. Então, terminar um relacionamento abusivo não é como terminar um namoro ou um casamento qualquer.
Não raro, a vítima não tem rede de apoio, já que foi isolada de amigos e familiares. Não tem independência financeira para se mudar ou se manter, já que com a desculpa de cuidado, foi induzida a abandonar o próprio trabalho ou simplesmente privada de renda pelo abusador. Além de estar com a autoestima em frangalhos e não ter mais noção da própria identidade fora do relacionamento.
Por isso, é comum que sejam feitas várias e várias tentativas antes de se chegar a um término concreto. Aos 17 anos, F*, que prefere ocultar sua identidade, se viu em um relacionamento abusivo com outra mulher, que na época tinha 20 anos. Embora já houvesse sinais de que o namoro era problemático desde as primeiras semanas – quando bebia, sua parceira ficava violenta, e as ameaças às vezes terminavam em agressões físicas –, F* só conseguiu finalizar de vez a relação cerca de 7 meses depois, ao decidir mudar de cidade.
“Houve diversas tentativas de términos antes, mas ela sempre aparecia de novo e me convencia a voltar. O discurso era sempre o mesmo: ela dizia que tinha mudado e que aqueles momentos ruins não iam mais acontecer. E eu acreditava e voltava”, relembra a jovem, hoje com 22 anos.
Sair dessa dinâmica abusiva exige muito mais do que esforço por parte da vítima. A ajuda de amigos e familiares, acompanhamento psicológico e orientação jurídica são aparatos que fazem toda a diferença para que a sobrevivente se sinta segura para abandonar seu abusador.
Sequelas psicológicas
Viver em uma relação abusiva é passar por um trauma que merece atenção como qualquer outro. O estresse e a insegurança provocados constantemente pela tensão presente no relacionamento desencadeiam mecanismos disfuncionais a curto, médio e longo prazo. As sequelas podem ser físicas ou psicológicas e emocionais, e a intensidade e apresentação dessas sequelas variam de pessoa para pessoa.
Quando falamos em sequelas psicológicas, as principais são:
- Ansiedade;
- Depressão;
- Transtorno de estresse pós-traumático (TEPT);
- Transtornos alimentares;
- Crises de pânico;
- Distúrbios do sono;
- Abuso de substâncias como álcool e remédios;
- Pensamentos suicidas.
O TEPT, por exemplo, costuma estar associado aos elevados níveis de estresse vivenciados pela vítima durante o relacionamento em questão. Com isso, o corpo passa a estar permanentemente em estado de alerta, o que impede a pessoa de entrar em um modo de relaxamento, já que ela está sempre se preparando para lidar com algum perigo ou ameaça.
Os transtornos alimentares também são comuns e não estão ligados apenas a fatores estéticos e de autoimagem. Eles podem, na verdade, ser manifestação de uma consciência de autoagressão: por se sentir culpada pelo comportamento do abusador, a vítima entende que deve ser punida e passa a se privar de alimentação, sono, etc.
Sequelas físicas
Uma pessoa vítima de uma relação tóxica também pode adoecer fisicamente. São comuns relatos de dores crônicas, alterações hormonais, baixa imunidade, problemas gastrointestinais e outros. Como já falamos, o estresse costuma ser o principal sinal, mas não é o único.
Dra. Naira Scartezzini Senna, médica ginecologista e obstetra, comenta a somatização física como consequência de uma relação abusiva.
“Os abusos psicológicos também podem gerar repercussão física. Dependendo do padrão desse abuso, que pode dizer respeito ao peso e a estética dessa mulher, pode se criar um estímulo a um comportamento de distúrbio alimentar, como a compulsão ou restrição. Dores musculares, articulares e alterações posturais podem surgir como uma resposta à posição de vergonha e de intimidação na qual a vítima está. Com o intuito de se esconder, ela passa a andar com a coluna cada vez mais curvada, com os ombros cada vez mais caídos. Essa situação de estresse intenso causado no corpo por repetidas agressões vai somatizar outros órgãos também. Essa somatização é real, e está relacionada ao que a vítima escuta, vive e revive todos os dias.”
Sequelas sexuais
Distúrbios sexuais como contrações involuntárias da musculatura pélvica e baixa lubrificação, que dificultam a penetração, também podem estar associadas ao trauma de um relacionamento abusivo, mesmo que não tenha ocorrido violência sexual.
Às vezes, a pressão causada pelo abusador sobre a estética e o corpo da vítima, a forma como o sexo era compreendido dentro da relação, a interpretação do sexo como uma moeda de troca ou como uma obrigação podem causar gatilhos que resultam nesses entraves sexuais.
“Distúrbios sexuais estão muito relacionados a abusos sofridos. Não apenas abusos físicos e sexuais diretos, mas também psicológicos. Revisitar uma memória antiga do relacionamento tóxico durante o contato sexual com um novo parceiro ou parceira pode gerar uma menor resposta de lubrificação e de excitação por associação”, ressalta a ginecologista.
Dra. Naira Scartezzini destaca a importância de um atendimento aberto, respeitoso e receptivo para entender as raízes do distúrbio sexual. “Nós, médicos, precisamos conversar com a paciente e criar uma atmosfera segura para que ela se sinta confortável para compartilhar o que viveu até ali. Um bom profissional vai saber fazer a relação desses sintomas físicos com possíveis traumas anteriores.”
Sejam quais forem os sintomas físicos, o atendimento multidisciplinar é fundamental para que essa sobrevivente passe pelo processo de cura e consiga seguir em frente.
Como romper o padrão de relacionamentos abusivos?
Algumas pessoas são mais vulneráveis a se envolverem em relacionamentos de natureza abusiva. É o caso dos indivíduos empatas, pessoas que foram privadas de atenção ou afeto enquanto cresciam e hoje tentam “compensar” essa falta através de um excesso de empatia para com o outro. A lógica é “se eu der mais, vou receber ainda mais”. Esse raciocínio faz com que essas pessoas tenham dificuldades em estabelecer limites e em dizer “não” e se doem excessivamente ao outro, o que acaba sendo prejudicial.
É importante lembrar que a culpa NUNCA é da vítima, mas esse padrão disfuncional acaba chamando a atenção de pessoas com perfis abusadores.
Outro fator de alerta é já ter vivenciado um relacionamento abusivo anterior. Seja ele romântico ou familiar, uma vez que a tendência é repetir os padrões quando não há um acompanhamento psicológico que ajude a vítima a processar o trauma. Assim, quando sai de um relacionamento, ela não tem a percepção de que o parceiro era abusivo.
“Quando ela sai dessa relação, ela entende que precisa ser melhor, que ela precisa melhorar e se torna ainda mais empata, atraindo o mesmo perfil de abusador. Ela pensa ‘dessa vez, eu vou fazer dar certo’, e quando vê, está novamente dentro de um relacionamento tóxico”, destaca a psicóloga.
Retomando o controle
Em qualquer que seja o caso, buscar ajuda psicológica profissional é fundamental para romper esse ciclo, seja para evitar novas relações nocivas, seja para se curar e não se tornar a pessoa abusiva em uma relação futura, como orienta a profissional de psicologia.
“É preciso buscar ajuda para trabalhar esse trauma. Se possível, busque um profissional psicoterapeuta que seja especializado em traumas, em relações abusivas. Passar pela fase do luto, da desconstrução do love bombing, reconstruir a própria identidade e autoestima fazem parte do processo de cura. Para cada um há um tempo, uma intensidade. É um processo difícil e doloroso, mas necessário.”
Ao sair das amarras do abusador, a vítima pode ter dificuldade em compartilhar o que viveu, por se sentir invalidada por amigos e familiares ou por não conseguir acolher a própria dor. Aliás, é importante ressaltar que o término do relacionamento é positivo, mas não causa alívio instantâneo. Então, se você vive essa situação, não se sinta culpada ou culpado por não estar bem imediatamente. Acolha a sua dor e encontre um lugar seguro para falar sobre ela. Saiba como buscar ajuda aqui.
Os grupos de apoio compostos por pessoas que passaram por situações semelhantes são importantes nessa jornada. “É preciso que a vítima tenha pessoas que entendam o que ela passou para ter sua dor acolhida e validada”, diz Alessandra Augusto.
*A identidade das entrevistadas foi alterada ou ocultada para sua proteção e segurança.
Matéria na íntegra: Os traumas deixados por uma relação abusiva | Drauzio Varella – Drauzio Varella (uol.com.br)